Rafael Sento Sé










Jane Catulle Mendès e a viagem que criou o sonho de um Rio de Janeiro na Belle Époque
Jane Catulle Mendès e a viagem que criou o sonho de um Rio de Janeiro na Belle Époque
Copyright © 2025 Rafael Sento Sé
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editores responsáveis
Rejane Dias
Schneider Carpeggiani
preparação de texto
Schneider Carpeggiani
revisão
Lívia Martins
capa
Arthur Carrião
(Sobre Photo12 / Easy Mediabank; Foto: Rio de Janeiro, Praia de Copacabana [1905?] por A. Ribeiro / Acervo da Biblioteca Nacional)
diagramação
Waldênia Alvarenga
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil
Sento Sé, Rafael
A poeta da Cidade Maravilhosa : Jane Catulle Mendès e a viagem que criou o sonho de um Rio de Janeiro na Belle Époque / Rafael Sento Sé. -- 1. ed. -- Belo Horizonte, MG : Autêntica Editora, 2025.
ISBN 978-65-5928-629-4
1. Catulle Mendès, Jane, 1867-1955 2. Escritoras francesas - Biografia e obra 3. Rio de Janeiro (Estado) - Descrições e viagens I. Título.
25-304051.0
Índices para catálogo sistemático: 1. Escritoras francesas : Biografia 848.092
Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129
CDD-848.092
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[...] pareceu-me qualquer coisa sonhante.
(Jane Catulle Mendès, quando da sua primeira visão da cidade do Rio de Janeiro) A baía de Guanabara
Pareceu-lhe uma boca banguela E eu, menos a conhecera, mais a amara?
Sou cego de tanto vê-la, de tanto tê-la estrela O que é uma coisa bela?
(Caetano Veloso, na letra de “O estrangeiro”)
A história de Jane Catulle Mendès não teria chegado ao público mais amplo se não fosse pelo incentivo e amor de Manoela, Antonio e Pedro. Foram igualmente de fundamental importância Morgana, Guilherme, Alice e Vitor. Almir, Anita, Celeste, Edmundo, Esmeraldino, Idolinda, Myriam e Valéria estão certamente orgulhosos, de onde quer que leiam estas páginas.
A amiga e historiadora Maria Inez Turazzi, a quem considero mentora, foi uma das incentivadoras de primeira hora e sugeriu a estrutura narrativa adotada. Agradeço aos meus colegas de redação ao longo da vida, na figura do Pedro Tinoco, que leu muitas das minhas histórias cariocas, e aos do mercado editorial, na figura de Leonardo Iaccarino.
Monica Ramalho, com seu colorido no olhar e na gargalhada, Alexandre Macedo, Caio Barretto Briso, Marcelo Calero e Maria Isabel Werneck foram sempre generosos na escuta em diferentes etapas.
Agradeço aos funcionários da Biblioteca Nacional, que fazem da Hemeroteca Digital um serviço de primeira necessidade para a memória, e aos arquivistas e historiadores da Biblioteca Marguerite Durand, da Academia Brasileira de Letras e do Museu da República.
E, por fim, agradeço demais à Carla Madeira, que me apresentou à Rejane Dias, da Autêntica Editora. Este livro não teria tomado esta forma se não fosse o cuidadoso trabalho de edição de Schneider Carpeggiani e de arte de Arthur Carrião e Diogo Droschi. Vocês foram incríveis.
11 Prólogo
O encontro (1911)
21 Túmulo dos estrangeiros
Paris (1895-1909)
39 “Soberbo grito de dor”
52 Um Hamlet esbelto
64 Cinco mil escritoras, nenhuma na Academia Francesa
77 Premonição
Rio de Janeiro (1911)
85 “Aurora da nossa emancipação”
102 Uma parisiense na avenida
115 Um olho nos palácios e outro nos céus
131 Um “punhado de lama” antes de partir
O epíteto (1913-1936)
147 Livros, borboletas e um “airoso camafeu”
164 Genealogia do esquecimento e a gênese do epíteto
175 Epílogo
177 Bibliografia
181 Notas
O nome de Jane Catulle Mendès surgiu pela primeira vez num livro determinante na minha paixão pela história do Rio de Janeiro. Ainda que tivesse herdado de meu avô Almir, poeta diletante, alguns clássicos da historiografia carioca, não tinha lido nenhum daqueles volumes, até abrir O Rio de todos os Brasis, do economista Carlos Lessa. Meu propósito era totalmente utilitário: buscava informações históricas para alguma reportagem da revista Domingo, do Jornal do Brasil, celeiro de gerações de grandes jornalistas nas áreas de comportamento e cultura.
O livro de Lessa, com seu resumo compreensivo dos quatrocentos e tantos anos de história da cidade, fascinou-me pelo estilo coloquial e pelas informações detalhadas e preciosas a respeito da cidade em seus momentos cruciais. O Lessa contava, por exemplo, a quantidade de padarias no Rio de Janeiro no início do século XIX.* Fiquei fascinado com aquilo, aparentemente uma informação banal, mas que vinha junto de uma série de reflexões sobre costumes tipicamente cariocas. Vejamos: se havia tão poucas padarias na época, o hábito de comer o pãozinho à base de farinha de trigo era raro. E só passou a ser chamado de francês por causa da nacionalidade dos donos desses estabelecimentos pioneiros.
* Eram 6 em 1816, para atender a uma colônia de franceses estimada em 1.400 pessoas.
Nesta primeira leitura, encantado pelo tanto de aspectos que uma simples padaria poderia guardar, ignorei completamente Jane Catulle Mendès – ela surge rapidamente no capítulo sobre a construção da noção de cidade maravilhosa no contexto da República Velha –, mas despertei para um aspecto da investigação histórica e sociológica que me acompanhou ao longo da minha trajetória profissional e que nunca abandonei. Se nem um hábito que parece a coisa mais natural do mundo, como comer um pão francês, foi sempre assim, então, tudo guarda uma história por trás, nem sempre visível, recoberto por inúmeras demãos que o tempo tratou de aplicar. Não havendo tradição inocente, tudo na cidade, enfim, tem aquele descascadinho no verniz, pronto para ser cavucado.
A partir daí, como repórter numa revista de comportamento focada no Rio de Janeiro, passei a buscar essas lascas, aquilo que alguns anos mais tarde descobri que o historiador Luiz Antonio Simas designou como as “pedrinhas miudinhas”,1 guardiãs de aspectos tão importantes da história de um lugar quanto os grandes artefatos. As pessoas comuns ou que ficaram escondidas pelas camadas do tempo podem ter muito mais a dizer sobre um determinado período do que os grandes heróis dos livros didáticos.
Foi justamente para resgatar personagens desconhecidos, e revisitar episódios históricos do Rio de Janeiro sob novos pontos de vista, que criei um blog em meados de 2012. Tornei-me assíduo de hemerotecas digitais. Sem sair de casa, encontrava materiais incríveis e experimentava um pouco da mesma sensação do antiquário quando se depara com uma peça valiosa. Mesmo falando para uma audiência pequena, cada novo achado me incentivava a pesquisar e postar mais, até o dia que me perguntei: e de onde vem o epíteto “Cidade Maravilhosa”?
O Google tinha a resposta de pronto, citava logo de cara a Jane Catulle Mendès; indicava uma outra tese, a do Coelho
Neto, como uma possível origem; li o artigo2 do festejadíssimo escritor brasileiro no qual ele menciona a expressão para descrever a Urca com os pavilhões construídos para a Exposição Nacional de 1908, e cheguei às referências catalográficas de La ville merveilleuse [A cidade maravilhosa], o livro que a poeta francesa escreveu depois de visitar a cidade, entre setembro e dezembro de 1911. Mais uma postagem estava, então, resolvida. Ia pegar alguns dos poemas traduzidos para o português, porque obviamente haveria de ter uma edição já traduzida –afinal tratava-se do livro que fez do Rio de Janeiro a Cidade Maravilhosa –, e ia fechar meu botequim.
Mas não, não existia uma edição em português de La ville merveilleuse, e a constatação despertou meu interesse em saber mais sobre o livro, sua autora e sua viagem ao Rio. Descobri que a obra de Jane Catulle Mendès, morta em 1955, estava longe de cair em domínio público, mas ainda assim não me conformava com a inexistência de uma versão em português dos poemas que consagraram o epíteto. Segui em busca de pistas e fui atrás do paradeiro de Jane Catulle Mendès nos jornais antigos e do livro em si. Se ninguém nunca havia traduzido aqueles poemas, eu mesmo me encarregaria.
Já nas primeiras buscas sobre madame Catulle Mendès, dei-me conta de que tinha encontrado um tesouro.
Ela, uma figura célebre da Belle Époque, empreende, no início dos anos 1910, uma viagem transatlântica na companhia somente de uma jovem assistente, algo um tanto incomum. Vem proferir palestras sobre diferentes aspectos da mulher francesa e, para promovê-las, convoca jornalistas dos principais veículos da época para um chá das cinco, numa pioneira coletiva de imprensa num hotel. Seus passos são acompanhados com enorme interesse por repórteres, fotógrafos e cartunistas. Um desses, surpreendido com sua caderneta e lápis indiscretos enquanto desenhava um retrato, merece uma reprimenda da visitante, num inédito flagrante paparazzo.
A poeta ficara viúva, havia pouco tempo, do escritor Catulle Abraham Mendès, uma figura igualmente festejada à qual se atribuía a invenção do termo parnasiano – o parnasianismo era um movimento literário em voga no Brasil naquele momento. Para Jane, a viagem é de alguma forma uma busca por afirmação e de construção de uma nova identidade, longe da sombra do marido e descolada da figura de musa. Ela encontra, no Rio recém-maquiado por Pereira Passos e saneado por Oswaldo Cruz, uma sociedade extremamente acolhedora. Os brasileiros da alta sociedade vestem-se como se em Paris estivessem e falam francês entre si, como se aquilo fosse sinal do incontestável grau de desenvolvimento alcançado. Quando Jane diz que o Rio é uma cidade maravilhosa, antes mesmo de conhecê-la mais a fundo – com base somente no primeiro pôr do sol testemunhado do navio –, soa como uma valsa de Arthur Napoleão.
Apesar do relevo alcançado por Jane Catulle Mendès, e especialmente da expressão consagrada por ela na Belle Époque, período sobre o qual tanto já se tratou, não havia nada escrito sobre sua vida, nem no Brasil nem na França.
Alguns especialistas na historiografia carioca chegaram a citá-la em suas obras – Carlos Lessa, Ruy Castro, Hilda Machado, para ficar nos mais recentes –, mas não atenderam aos seus encantos e chegaram a se equivocar ao repetir que madame Catulle Mendès seria neta de Victor Hugo.
Os registros daquela viagem, tão significativa para o posicionamento do Rio de Janeiro como um destino desejado por turistas no mundo inteiro e para as relações culturais entre a França e o Brasil, estavam restritos aos jornais antigos. Seus bastidores nunca haviam sido recontados num livro. Ampliei minhas buscas para acervos digitais na França, na Argentina, em Portugal, nos Estados Unidos e na Espanha e me deparei com uma poeta engenhosa, de personalidade marcante, que, em sua terra natal, desafiara as convenções sociais.
A pesquisa abriu-me um baú recheado de referências artísticas, literárias e jornalísticas da profícua produção da Belle Époque, que se entrelaçam com a trajetória de madame Catulle Mendès. Se o Hamlet, vivido por sua comadre Sarah Bernhardt, en travesti, com seu cartaz de Alphonse Mucha e adaptação de Marcel Schwob, foi um marco da crônica teatral em 1899, para a poeta se tornou um episódio dramático. Se o jornal La Fronde, com sua equipe completamente integrada por mulheres, apontou caminhos para o feminismo, para a poeta representou a tribuna em que descobriu o poder de sua voz literária.
Madame Catulle Mendès valeu-se das inovações tecnológicas da época, como a fotografia, jornais e revistas, para construir a imagem de uma mulher festejada internacionalmente, símbolo da mais venerada das nações naquela virada de século. Sua vida, assim como a de outras escritoras célebres, atrizes do teatro, rainhas e princesas, era acompanhada com enorme interesse por publicações precursoras das atuais revistas femininas de comportamento. As conferências em Paris e em Lisboa, antes da viagem ao Rio, renderam matérias de página inteira; sua participação como integrante do júri do prêmio La Vie Heureuse, antecessor do atual Femina, era notícia, e a convidavam a opinar em enquetes sobre duelos e outros temas pertinentes à época. Nessa incipiente indústria da celebridade pré-Era do Rádio e pré-Hollywood, Jane aprendeu com dois ases na arte de arrebatar corações e mentes: a atriz Sarah Bernhardt, precursora das turnês mundiais, que vinha a ser sua comadre, e seu ex-marido, o escritor Catulle Abraham Mendès.*
* Para evitar ambiguidades com o nome de Jane Catulle Mendès, ao nos referirmos ao marido optaremos por seu nome completo, conforme grafado por Lanceron (2020), ou pelo segundo termo do nome composto, Abraham.
Questiona-se hoje em dia, com razão, se a Belle Époque foi tão bela assim por conta de gritantes contradições da sociedade. As mulheres não votavam, e a legislação francesa previa que os salários delas deveriam ser pagos ao marido. Havia, no entanto, um grupo de escritoras e jornalistas na linha de frente da luta por direitos. A produção literária foi um desses campos, e elas conseguiram superar inúmeros obstáculos para serem reconhecidas e conquistar sucesso, não apenas na França como também no Brasil. Essas pioneiras se tornaram parte indispensável desta pesquisa, que pode oferecer subsídios para quem se interessa em estudar o protagonismo da mulher na literatura. Além de Júlia Lopes de Almeida e suas conterrâneas e contemporâneas Emília Moncorvo Bandeira de Mello e Gilka da Costa Machado, ao longo do texto serão revisitadas passagens da vida da francesa Marguerite Durand e da cubana Aurelia Castillo de González, entre outras.
O baú que abri também guardava partituras inspiradas em Charles Baudelaire, cartazes art nouveau feitos por artistas mulheres, libretos de ópera, esculturas de mármore, cartões-postais e de visita, manifestos feministas e revistas de comportamento feminino. Na tentativa de entender que cidade era aquela que se apresentava a uma turista no início do século XX, deparei-me com alguns guias turísticos, entre eles, The Beautiful Rio de Janeiro e suas raras gravuras a cores, que ilustram algumas páginas deste livro, e com o esmero de Rio de Janeiro et ses environs, cujo primeiro exemplar foi entregue a Jane por seu idealizador, monsieur Charles Morel, veterano da Crimeia, fundador do jornal L’Étoile du Sud e um dos franceses que melhor conhecia o Brasil naquele momento. Impresso possivelmente na Suíça num formato portátil, trazia guia de ruas e uma história resumida da cidade com elementos saborosos.
Ambos os guias, ao valorizar os atrativos da cidade, foram vivamente saudados por ocasião de seus lançamentos,
mas nenhum deles causa o impacto de La ville merveilleuse. O livro de Catulle Mendès é recebido com resenhas elogiosas na França e no Brasil, e seu título, logo traduzido e citado em matéria que fazia um contraponto com uma realidade – a da falta d’água em pleno verão – não tão maravilhosa assim.3 Em minha busca por um exemplar, encontrei uma edição, pela internet, na Biblioteca Pública de Nova York, que, mediante o pagamento de uma taxa, poderia me mandar uma cópia digital daquela raridade num CD-Rom. O tão aguardado envelope chegou alguns meses depois, já no ano seguinte, com os 33 poemas raros, que, sabe-se lá por quanto tempo, não eram lidos por ninguém, num francês antigo, representantes do parnasianismo – estilo literário conhecido pelo rebuscamento formal, pela métrica precisa e, principalmente, por certa afetação sentimental.
La ville merveilleuse é uma espécie de diário poético. Foi uma leitura penosa no começo. Tentei fazê-lo, num primeiro momento, sem o auxílio de um dicionário, só para sentir de que forma os poemas mexiam comigo. Mesmo sem entender parte das palavras, era possível enxergar a beleza e o talento da poeta. Havia um ritmo peculiar e figuras de linguagem hiperbólicas. Os sonetos foram mais fáceis de serem assimilados, mas havia outros com mais de duzentos versos. Uma boa parte dos poemas era dedicada a personalidades da política, das artes ou da literatura, incluindo mulheres, que ela conhecera em sua estadia.
Um deles, já para o fim de La ville merveilleuse, fez-me entender uma característica valorizada pelos parnasianos e a qual a própria madame Catulle Mendès atribuía a si própria: a sensitividade. Ao longo da vida, mencionou mais de uma vez essa sua percepção aguçada, para além dos cinco sentidos, como algo inerente aos bons poetas, grupo no qual ela se incluía. Parecia-me, num primeiro momento, algo irrelevante para a história que eu pretendia contar. Porém, em mais de
uma vez, topei com demonstrações de sua sensitividade e que, de alguma forma, materializou-se na leitura do antepenúltimo poema do livro. A essa altura, eu já estava completamente aficionado pela personagem e imbuído da missão de alçá-la à ribalta novamente.
O livro com os poemas sobre o Rio de Janeiro representa um marco não apenas para a cidade, mas também para a própria autora, em sua busca por autonomia intelectual, e para as relações entre o Brasil e a França. Com La ville merveilleuse, ela parece afirmar sua capacidade de seguir adiante, fora da sombra do segundo marido – morto trágica e inesperadamente dois anos e meio antes –, e por um caminho que incluía as conferências. Ao longo dos dez anos seguintes, subiu aos palcos para proferir ao menos quinhentas palestras, pelas contas da própria autora.
No seu esforço para divulgar o lançamento do livro, madame Catulle Mendès promove eventos em Paris para falar da Cidade Maravilhosa e de seus aspectos culturais. O Rio de Janeiro, para ela, seria “brevemente a cidade de vilegiatura mais frequentada do mundo”. “Vi o Brasil com os olhos de uma intelectual e não como exploradora que comercialmente vai avaliar uma mercadoria”, compara, ao retornar. Jane, então, promove eventos que misturam palestra, projeção de fotografias, sarau de poesia e apresentações musicais, acompanhadas da performance de dançarinos, para demonstrar os ritmos brasileiros.
Nessas “galas franco-brasileiras”, promovidas a partir de seu retorno e até o início da Primeira Guerra, a pianista Magdalena Tagliaferro demonstra seu virtuosismo com repertório do Brasil e a cantora lírica Nícia Silva, que Jane conhecera no Rio de Janeiro, interpreta O guarani, de Carlos Gomes. Artistas franceses do primeiro time, como Réjane e Mounet-Sully, leem traduções de autores mortos, como Gonçalves Dias e Machado de Assis, e vivos, Olavo Bilac e Graça Aranha entre estes.
Em 1914, Jane decide homenagear Júlia Lopes de Almeida com um banquete no MacMahon Palace, em Paris, ao qual comparecem as maiores escritoras francesas da época, artistas renomados dos dois países e personalidades brasileiras na França. Júlia é saudada como a George Sand brasileira. O cardápio mistura especialidades locais como o consommé luteciano com iguarias exóticas para os paladares franceses, como o doce de bacuri, e criações possivelmente pensadas para a confraternização, caso do tornedor à Machado de Assis e o parfait à moda da homenageada.
Revisitar a trajetória de Jane Catulle Mendès é, além do resgate da memória, um projeto para saudar toda uma geração de escritoras esquecidas, do início do século XX, e também um desejo de lançar luz sobre um episódio incontornável da história das relações entre a França e o Brasil. Os brasileiros, tão habituados a visitar Paris em busca das últimas modas, enxergam maravilhados nas vitrines algo além das novidades francesas. Parece um reflexo! Mas madame Catulle Mendès mostra que é mais do que uma imagem refletida. Tem coisas nossas, do Brasil, dentro do magasin.
A filha de Célestin Marie Mette e Eugénie Sara Mayer nasceu em 16 de março de 1867, em Paris, e foi batizada Jeanne Mette. A versão anglicizada do nome com o qual se consagraria só seria adotada depois do casamento com Catulle Abraham Mendès, visto abaixo ao lado do único filho que tiveram juntos, Jean Primice, no alvorecer do século XX.
O filho de madame Catulle Mendès tinha como meiasirmãs as meninas retratadas por Renoir, em volta do piano, em 1888. Eram três das filhas que Abraham tivera num relacionamento anterior. A madrinha de Jean Primice era a maior atriz francesa, Sarah Bernhardt, que, em 1899, encarnou o personagem shakespeariano Hamlet, um marco na história da crônica teatral parisiense da Belle Époque, em montagem com cartaz de Alphonse Mucha (abaixo).
Cartaz da artista C. H. Dufau para o La Fronde, jornal inovador que empregava mão de obra exclusivamente feminina e que ofereceu a primeira colaboração fixa a madame Catulle Mendès em 1898.
Bibliothèque Marguerite Durand
Carta de demissão endereçada a Marguerite Durand, diretora e idealizadora do periódico, em que agradece a “hospitalidade” e as “deliciosas recordações”.
O retorno de madame Catulle Mendès às páginas foi saudado pela revista de comportamento La Vie Heureuse. Sua presença nas estreias teatrais ao lado do marido foi registrada por artistas como René Lelong (acima).
Nacional da França
Madame Catulle Mendès inspirou os estúdios mais concorridos da Belle Époque, como o de Chéri Rousseau, autor do retrato que ganhou o mundo, como se pode ver na reprodução da página do jornal brasileiro O Paiz.
Retrato em pastel feito por Gustave Brisgand e publicado em Muses d’aujourd’hui (1910), que apresentava o perfil de onze escritoras contemporâneas, entre elas Jane Catulle Mendès. Abaixo, folha de rosto de Chez soi, publicado pela Sansot em 1911.
“A marcha para a Academia”: a revista Femina lançou, em 1909, campanha em prol da mulher na Academia Francesa de Letras e inclui sua crítica teatral, Jane Catulle Mendès, na engenhosa fotomontagem.
De Paris para o Rio, em 1911, a marcha de mulheres, lideradas por Leolinda Daltro, pelas ruas do Catete, para celebrar a criação do Partido Republicano Feminino, que tinha como oradora oficial a poeta Gilka Machado.
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