Presente do acaso - Um ensaio Biográfico sobre Silviano Santiago

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Presente do acaso

Um ensaio biográfico sobre

Silviano Santiago

Presente do acaso

Um ensaio biográfico sobre

Silviano Santiago

Copyright © 2025 João Pombo Barile

Copyright desta edição © 2025 Autêntica Editora

Crônica “A rebelião dos jovens em feitio de oração: eis o Catecismo do Bom Rebelde”, p. 198-200

Carlos Drummond de Andrade © Graña Drummond www.leiadrummond.com.br www.carlosdrummond.com.br

Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora Ltda. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.

editores responsáveis

Rejane Dias

Schneider Carpeggiani

preparação de texto Schneider Carpeggiani revisão

Aline Sobreira

capa

Diogo Droschi

(Capa: sobre imagem de acervo pessoal do Silviano Santiago. Contracapa: sobre imagem de Nikolas Candido)

diagramação Guilherme Fagundes

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Barile, João Pombo

Presente do acaso : um ensaio biográfico sobre Silviano Santiago / João Pombo Barile. -- 1. ed. -- Belo Horizonte, MG : Autêntica Editora, 2025.

ISBN 978-65-5928-633-1

1. Escritores brasileiros - Biografia 2. Santiago, Silviano, 1936I. Título.

25-299868.0

Índices para catálogo sistemático: 1. Escritores brasileiros : Biografia 928.69

Eliete Marques da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9380

Belo Horizonte

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Belo Horizonte . MG

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Recebe com simplicidade este presente do acaso.

Mereceste viver mais um ano. Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos. Teu pai morreu, teu avô também.

Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte, mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo, e de copo na mão esperas amanhecer.

Carlos Drummond de Andrade. Passagem do ano. In: A rosa do povo.

Agradecimentos

“O mundo é os outros. A vida é os outros. Sem os outros não sou”, gostava de repetir o dramaturgo Domingos Oliveira.

Este livro não existiria sem a ajuda de um monte de gente. De muitos outros.

Ao amigo Silviano, pela confiança e paciência.

Ao meu amor, Carol. E aos meus filhos, Maria e Francisco.

Às minhas irmãs, Fátima, Teté e Fabiana.

Ao poeta Carlos Machado e ao jornalista Schneider Carpeggiani: leitores atentos, que sabem misturar afeto e razão.

A Rejane Dias, que desde os anos 1990 já me falava da necessidade deste livro.

Ao amigo Humberto Werneck e nossas conversas sobre Fernando, Otto, Hélio, Paulo, Sérgio e Jaime.

A Ezequiel Neves (in memoriam).

A Celia (in memoriam) e Norberto. Sempre.

22. Sábado à noite 75

23. O caminho de Santiago 78

24. Zeca em 78 rpm 85

25. As cartas não mentem jamais 88

26. Dois alienados 91

27. Mentor 95

28. Antônio Nogueira 99

29. BH era uma festa 102

30. Beckett em BH 105

31. “Se você quiser ser pobre, tudo bem” 111

32. Vida de ator 113

33. No tempo do CPC 116

34. Vida de jornalista 119

35. Baila comigo 124

36. Adeus, BH 127

37. Alexandre, o Grande 132

38. Relíquia 136

39. Duas faces 138

40. Diáspora mineira 146

41. Um telefonema de Clarice 148

42. Bolsista peruano 153

43. Passado colonial 156

44. Acaso 159

45. No deserto de Chihuahua 162

46. A carta de Caminha 165

47. On the Road 170

48. Um estranho no ninho 174

49. Schneider Primeiro 178

50. Livros & discos 181

51. Poeta de campos e espaços 183

52. O susto 188

53. De volta a Paris 190

54. Gide & Machado 192

55. Drummond & maio de 1968 194

56. Tradição e ruptura 200

57. Festival de inverno 201

58. Le mot juste e a pressa 204

59. Belorizontal canadense 206

60. Geringonça 209

61. Invasão francesa

62. Affonso e Laís 214

63. Amigo argelino 217

64. Vivo ou morto 219

65. Ser latino num país WASP

66. Abdias e Florestan 224

67. Chairman brasileiro 229

68. Uma ferramenta de trabalho 231

69. Machadianos em Buffalo

70. O doce desejo do retorno

71. Wired man 246

72. A relíquia

73. Poeta de Nova York

74. Virada biográfica

75. Vida louca vida

76. Sobrevivendo na selva

77. O olhar

78. Drummond & Derrida

79. Haroldo

80. 26 poetas e um crítico

81. Ainda poeta

82. Cartão de Natal 275

83. Chamadas telefônicas 279

84. Transe perfeito 284

85. Intruso 290

86. Os novos amigos de Minas 292

87. Amigo carioca 297

88. Um verso de Drummond 299

89. Tente entender o que tento dizer 304

90. Bisbilhotar 309

91. Ênfase na vírgula 314

92. Blanche Dubois 317

93. Na mesa do bar 320

94. Disforme, fantástico e ameaçador 327

95. “Falamos mais depois” 333

PREFÁCIO

“Sim, você fez a coisa certa”

No final de maio de 2023, durante um jantar em Copacabana, Silviano e eu nos reencontramos para colocar a conversa em dia. Era a primeira vez que nos víamos desde o fim da pandemia. Havia muito tempo que não conversávamos pessoalmente, e, por isso, o encontro se estendeu por horas. Por coincidência, naquela mesma época, completavam-se quase 25 anos desde que nos conhecêramos, quando eu ainda era estudante na Universidade de Cambridge. Talvez por isso nossa conversa acabou girando em torno da passagem do tempo. Silviano, cuja vivacidade e perspicácia desmentem completamente sua idade, foi encantadoramente franco ao refletir sobre a própria vida a partir da consciência de sua proximidade com o “fim”. Sua eloquência e seu senso de humor ao abordar o tema eram reforçados pelos ensaios que, na época, ele escrevia para o livro Grafias de vida – a morte. Falamos também sobre a vida acadêmica. Comentei com ele que, no Reino Unido, o futuro da maioria dos departamentos de Línguas e Culturas Modernas no ensino superior é cada vez mais incerto – sendo a situação particularmente grave para línguas menos difundidas, como o português.

Entre histórias pessoais, reflexões acadêmicas e a discussão sobre o ensino de línguas, ele então me contou de uma conversa que havia tido, alguns anos antes, com o dramaturgo Tom Stoppard. Ele lhe perguntara como era escrever em uma língua que poucas pessoas liam. Silviano então respondera ao dramaturgo: acreditava (e seguia

1 Professor de Literatura e Cultura Latino-Americana na Universidade de Manchester.

acreditando) que escrever em português tinha lhe proporcionado uma liberdade expressiva que ele certamente não encontraria em nenhuma outra língua. A pergunta de Stoppard, feita de maneira direta, objetiva e sem rodeios, claramente incomodou o escritor, que ficou com aquela pergunta na cabeça.

Foi aí que Silviano me perguntou se eu achava que ele tinha feito a coisa certa: ter deixado, décadas antes, a América do Norte e voltado para o Brasil.

A resposta à pergunta inesperada de Silviano foi relativamente simples. Eu lhe respondi que, caso ele tivesse ficado nos EUA, seus escritos acadêmicos certamente teriam sido muito mais lidos fora do Brasil e da América do Sul do que são hoje. Ele sabia disso: afinal de contas, ele mesmo havia testemunhado o sucesso que o seu ensaio “O entrelugar do discurso latino-americano” tinha feito fora do Brasil, antes de sua volta. Lembrei-lhe também o que as exigências da vida universitária nos EUA – e a inexorável mudança para escrever quase exclusivamente em inglês – teriam significado para sua carreira literária, intimamente ligada à vida no Brasil e que mantém um diálogo tão sutil com a história literária brasileira. Sua ficção teria tido muito menos chances de florescer. Em inglês, ainda argumentei durante o jantar, ele teria sido rotulado como um pensador pós-colonial ou pós-estruturalista. E certamente seria celebrado por isso, talvez até mais do que é agora. Mas isso também poderia tê-lo desencorajado a seguir e, eventualmente, se comprometer com sua literatura.

Claro que eu sabia que sua volta ao Brasil e a publicação em português tinham lhe trazido muitas dificuldades. Basta lembrarmos como o establishment acadêmico reagiu quando ele lançou, em 1985, Stella Manhattan . Mas sabia também que os sacrifícios do longo caminho percorrido por Silviano tinham, sim, valido a pena: o conjunto da obra produzida, e ainda em expansão, era verdadeiramente excepcional.

Senti-me aliviado por poder dizer “sim, você fez a coisa certa”, e dizer isso com sinceridade. Silviano sorriu para mim, generosamente. Não sei se isso significava que ele estava satisfeito com a resposta ou se achava que eu estava sendo gentil. Alguns dias depois, a discussão foi retomada em seu apartamento. Vimos cartazes de eventos em

Buffalo que ele tinha organizado com René Girard, envolvendo Jacques Derrida e Michel Foucault, e convites que ele conseguiu fazer a Glauber Rocha e Hélio Oiticica durante seu período como chefe de departamento. O assunto que poderia ter novamente surgido dessa vez foi rapidamente cortado pela raiz, e a conversa se voltou para os projetos em que ele estava trabalhando agora e ideias para o que ele poderia trabalhar a seguir. E então comentou comigo que um amigo seu, jornalista em Minas, estava escrevendo sua biografia, o livro que o leitor vai ler a seguir.

A biografia de Silviano Santiago escrita por João Pombo Barile conseguiu uma façanha notável. Figura bastante conhecida, sempre produzindo, Silviano deu centenas de entrevistas ao longo dos anos. Além disso, toda a sua produção literária se baseia no fascínio, ou na perspectiva, da autobiografia. Este estudo, ou diálogo prolongado, mostra que, apesar da aparente familiaridade, há muito de Silviano que não sabíamos. Mostra também que não são apenas os muitos narradores de Silviano que são mercuriais.

Sempre altruísta, Silviano é, porém, um homem muito reservado quando se trata de sua família e sua vida privada. Por isso, fiquei surpreso quando ele me disse que estava entregando as chaves de seu arquivo (com toda a sua correspondência acumulada) a um jornalista. Afinal de contas, eu tinha visitado sua casa muitas vezes, ao longo de vários anos, e nunca pisei em sua biblioteca, que ele sempre mantinha em um segundo apartamento.

Quando Silviano concordou em participar da biografia, parecia disposto a oferecer a João acesso irrestrito. Mas, com o tempo, passou a pontuar as conversas com sorrisos enigmáticos – ou a interrompê-las por completo, graças a inesperadas aulas de pilates que, de maneira curiosamente oportuna, sempre pareciam prestes a começar assim que as perguntas começavam a incomodá-lo.

Biógrafo e biografado conversaram longamente, com cordialidade, mas não evitaram, de tempos em tempos, um duelo criativo. Silviano reconhece que esta biografia fará parte de seu legado como artista e, embora frequentemente fale aqui em primeira pessoa, o faz para expor

sua luta em ceder o controle da narrativa – e a necessidade constante de renegociar sua forma. As tentativas ocasionais de dissimulação de Silviano renderam passagens divertidas. Em vários trechos do livro, Silviano testa a coragem de seu biógrafo, tanto como pesquisador quanto como autor, claramente desejando que ele se torne seu Boswell contemporâneo. João Barile aceitou o desafio. E suas reflexões sobre a dinâmica desses encontros ao longo dos anos são ao mesmo tempo bem-humoradas e reveladoras, oferecendo insights valiosos sobre a psicologia de seu personagem.

Como o próprio Silviano diria, é no entrelugar – neste caso, na relação dos interlocutores – que mais aprendemos.

1. Conversar

“O que você pretende com essas entrevistas? Vamos decidir antes.” Logo que ele abriu a porta do seu apartamento em Copacabana, pela cara fechada, senti que a conversa era séria. Silviano estava desconfiado. Silviano é desconfiado. O ganhador do Prêmio Camões 2022 queria saber, de saída, que livro seria este que você, caro leitor, tem agora nas mãos.

Por ingenuidade, ignorância ou mero vício jornalístico, a ideia me parecia simples: conversar. Um grande papo, feito em várias sessões de entrevistas.

Minha referência inicial era um livro de Didier Eribon, que adoro, De perto e de longe, no qual o jornalista e escritor francês arranca histórias deliciosas, e elucidativas, do antropólogo Claude Lévi-Strauss. Pensava também nas entrevistas da revista Paris Review: sou fã da publicação norte-americana criada nos anos 1950 e que durante mais de seis décadas conversou com centenas de escritores, traçando excelentes perfis. Além dessas referências, eu tinha em mente ainda uma conversa que tivemos, em 2019, quando ele relançou Uma literatura nos trópicos. Em um dos ensaios, “Bom conselho”, Silviano, já nos anos 1970, chamava a atenção para a importante função social que a entrevista tem na cultura brasileira. No texto, ele explicita como o diálogo do leitor com as obras pode ser feito por meio delas. “O livro é caro e muitos leitores não têm acesso a ele. Nossa cultura sempre foi muito mais oral do que escrita. Para mim, as entrevistas são importantes porque você pode dizer o que está implícito em sua realização artística. Se por acaso

a Globo me pedisse uma entrevista, eu jamais diria não, mesmo sabendo que falaria de assuntos de que não trataria se a entrevista fosse feita por um jornalista da área de literatura ou mesmo um crítico literário. Ao fazer uma entrevista na tevê, posso transmitir uma mensagem que será assistida por pessoas que nunca me conheceram, que nunca me leram e que provavelmente nunca lerão meus livros. A entrevista tem, portanto, uma enorme função social no Brasil.”

Um escritor não nasce no primeiro livro. Ele percorre uma trilha: uma reflexão preliminar a respeito da literatura, do mundo. O primeiro livro frequentemente é precedido de muitas tentativas frustradas. Por trás dos livros, há também um homem, uma vida: um monte de acontecimentos, paixões, histórias familiares e sonhos. Assim, nesse livro imaginário, Silviano falaria de sua infância, de sua formação intelectual, de seus amigos, de filmes e de livros. E do que mais lembrasse. Meu papel seria mínimo: quanto menos minha voz aparecesse, melhor. Nossas conversas girariam, principalmente, em torno dos seus romances e contos. Silviano escritor de ficção. E só tratariam dos seus textos teóricos onde estes tocassem no seu universo ficcional.

Silviano faz parte de uma tribo hoje quase extinta. E que tem caciques como Alexandre Eulalio, Antonio Candido, Francisco Iglésias e Otto Lara Resende. Gente que, em um papo despretensioso, explica a cultura brasileira melhor, e de forma mais elegante e precisa, do que a maioria dos nossos especialistas. Conversando com Silviano há quase três décadas, sempre acreditei existir uma relação entre esse grande contador de histórias e seus livros. Ele faz parte da tribo dos “irremediáveis ensaístas”, como escreveu Antonio Candido numa carta ao próprio Silviano em 1983.

Confirmando o lugar-comum de que o mineiro é, antes de tudo, discreto, Silviano nunca faz muito alarde. Abre o jogo aos poucos. Com poucos. Escolhe os interlocutores. Apesar de saber de tudo o que se passa naquilo que Brito Broca chamou de “vida literária”, odeia escândalos. “Você acha que vou expor a intimidade dos meus amigos? Jamais”, ele não cansou de me repetir, ao longo dos anos, sempre que eu sugeria a ele a ideia de colocarmos no papel algumas das suas histórias.

Silviano, quando quer, é um grande conversador. Quando quer.

“O que você tinha pensado?” Foi a primeira coisa que ele me disse, assim que começamos a conversa. “Você acha mesmo que um livro de entrevista funcionaria? Ao longo da vida, dei centenas delas. Tenho até um livro com as melhores.”

Arquivo pessoal/Silviano Santiago

Detalhe da carta de Antonio Candido (onde está escrito irremediáveis ensaístas).

Nos primeiros 30 minutos da conversa, comecei a achar que a minha genial ideia da conversa, livre e solta, talvez não fosse assim tão boa. *

Duas características na ficção de Silviano podem deixar o leitor ingênuo meio perdido.

Em primeiro lugar, a mudança constante do foco narrativo: a cada novo livro, um novo tipo de narrador. Silviano adora experimentar.

Odeia se repetir. Assim, já foi Graciliano, Stella, Artaud ou Machado. Já foi até mesmo Silviano. “Gosto de uma frase do Jack Kerouac que diz ‘Não sou eu sou. Mas sim um espião num corpo estranho’”, me disse uma vez em Belo Horizonte.

Em segundo lugar, a mistura de gêneros. Seus livros sempre deixam os livreiros confusos: em qual estante a obra de Silviano deve ficar? Ensaio? Romance? Ou não será melhor colocar na seção de biografias, que vende mais? A palavra “romance”, estampada na capa de alguns dos livros, até tenta facilitar as coisas para as livrarias.

Tudo isso passou pela minha cabeça enquanto eu olhava para aquele quadro de Francisco de Souza que fica na sala de estar do apartamento da Nossa Senhora de Copacabana. Sem nunca ter lido um livro de Silviano, o artista popular, que trabalhou como jardineiro durante anos na casa que o escritor teve em Petrópolis, criaria uma imagem que sintetiza bem sua prosa.

Casa de Petrópolis, quadro de Francisco de Souza.
Arquivo
pessoal/Silviano
Santiago

Naquela tarde, durante o nosso primeiro encontro, irredutível, Silviano não abriu a boca. Já meio entediado, eu olhava para aquele quadro e tentava pensar numa pergunta que parecesse inteligente. Uma pergunta que abordasse os seus narradores ou a mistura de gêneros na sua obra. Enfim: tentava fazer com que ele, simplesmente, falasse. Mas, naquele dia, nada funcionava. Mesmo percebendo que ele não queria falar, fui em frente.

A conversa começou a ficar enlouquecedora: em vez de responder, ele não parava de perguntar. “Vai ser mesmo um livro de entrevista? Que tipo de narrador você tinha pensado? Só posso começar a falar depois que você achar o narrador. Se você não sabe por onde começar, não é possível prosseguir.”

Ao final da primeira hora daquela estranha conversa que não saía do lugar, eu me sentia numa banca de qualificação de doutorado e comecei a dar por perdido o dia de trabalho. Silviano, curiosamente, não estava preocupado. Parecia até se divertir com a minha aflição.

Já passava das cinco da tarde, quando ele então se levantou da cadeira. Decidido, foi em direção à cozinha. “Está com fome? Gosta de cereja? Comprei umas portuguesas ótimas. Vou trazer. E pegar um pão de queijo também.”

Quando voltou da cozinha, Silviano parecia não perceber meu incomodo em não conseguir fazer que ele falasse. Ou, se notava, não se importava muito com isso.

“Fique tranquilo. Temos tempo. É preciso, antes de tudo, achar a forma. Você está acostumado com texto de jornal. Aqui é diferente. Só se começa um livro depois que a gente acha o narrador”, repetia sem parar. “Tudo pode entrar nesse livro. Inclusive isto: a dificuldade do começo. Entende? De eu lhe perguntar sobre como será o livro; de eu me levantando e indo até a cozinha para trazer cereja e pão de queijo. Entende? Acredite: quero te ajudar a encontrar uma maneira de escrever esse livro.”

Aos poucos fui me dando conta: Silviano resistia à minha ideia inicial de criar um narrador neutro, objetivo. Sem a minha voz. “Você não pode escrever esse livro de fora. Engano seu. Você pretende ser objetivo: não há como. Impossível. Não existe essa possibilidade de você escrever esse livro do lado de fora.”

Por alguns minutos, ficamos ali conversando sobre amigos comuns. Dos mortos e dos vivos. E comendo cereja e pão de queijo.

O acaso, sempre ele, levou nossa conversa até Francisco Iglésias, grande historiador brasileiro, morto em 1999. Silviano preparava uma conferência sobre ele, em homenagem ao centenário do amigo. A figura divertida do erudito Iglésias tomou conta da sala. Lembrei-me das visitas que fazia a ele, no seu apartamento da Rua Levindo Lopes, em Belo Horizonte. Já nos últimos anos de vida, Iglésias perdia seu precioso tempo com um repórter impenitente chamado João. E, generoso, compartilhava seu oceânico conhecimento.

Por alguns minutos, esqueci completamente que estava tentando fazer uma entrevista.

Na hora não percebi, mas este livro já começava a ser escrito ali.

2. “Você viu nos jornais de hoje?”

No dia seguinte, antes das oito, Silviano me esperava em frente ao prédio do seu apartamento. Já tinha feito a leitura dos jornais, hábito herdado do pai, e pronto para o trabalho.

“Vamos lá? Pensou nas coisas que conversamos ontem?”, foi disparando, eufórico, assim que me viu, e começamos a caminhar em direção a Ipanema. Durante o caminho, me dei conta do entusiasmo que ele começava a ter pelo novo projeto. E me lembrei de um ensaio do escritor Antonio Olinto sobre a obra de André Gide.

Escritor fundamental nos primeiros anos de Silviano – seu doutorado na Sorbonne seria sobre o autor de Os moedeiros falsos –, no texto Olinto revela o segredo da eterna mocidade do pensamento de Gide, que participou de quase todos os movimentos literários posteriores aos de sua geração: o escritor francês nunca perdeu o interesse pelo contemporâneo. “Gide nunca deixou de se interessar pela novidade literária”, escreve Olinto. Impossível não pensar em Silviano e no seu espírito inquieto, sempre ligado no aqui e agora. “Você viu nos jornais de hoje?” é a frase que mais ouço toda vez que telefono para ele.

“Tenho uma boa notícia”, me disse quando estávamos quase chegando à Praça General Osório. “Hoje pode me perguntar o que quiser.

Prometo que respondo. Mas, antes, quero te mostrar meus papéis e a minha biblioteca, que fica na Rua Antônio Parreiras.”

Às vezes me esqueço de que Silviano tem 89 anos.

3. O livro de Rosa

Assim que entramos no apartamento, uma espécie de esconderijo onde até a pandemia costumava se isolar, Silviano tenta ligar o computador. Inútil: a engenhoca não reage. O lugar, que desde 2004 servia de local de trabalho, estava meio abandonado. Na parede, em frente à mesa de trabalho, uma antiga fotomontagem da cidade de Formiga remete ao seu passado mineiro. E me faz lembrar de sua ficção. De um trecho de Uma história de família:

Você sabia, tio Mário, que tenho uma fotografia não da sua Pains, mas da minha Formiga dos anos 1930 na parede. O fotógrafo francês – me disse uma tia paterna dando os créditos da foto ao nosso avô prefeito – subiu ao alto do morro da Caixa-d’Água e tirou oito chapas da paisagem citadina recobrindo uma vista com ângulo de 180 graus. Reveladas as fotos, colou os oito cartões-postais um ao lado do outro, perfazendo o todo uma vista global da cidade cujas casas e ruas aparecem como sementes jogadas pelo vale. O ponto central é o encontro dos dois rios, o Formiga e o Mata-Cavalos, que correm em V pela foto, já baça e ganhando coloração sépia. O fotógrafo viu Formiga lá embaixo em pontos brancos e lá em cima e à esquerda ladeada por um grupo de seis palmeiras. Gosto de europeu nos trópicos.

Disciplinado, desde que se aposentou da vida universitária, a rotina é a mesma: trabalhar, de segunda a sábado, das sete ao meio-dia. E, quando necessário, até de domingo. Todo dia, logo de manhãzinha, às seis e meia, no máximo sete, ele já estava no apartamento-biblioteca. Ali conseguia o isolamento necessário para ler e escrever sem ser interrompido por telefonemas indesejáveis. “Nunca quis que aqui fosse confortável. Para não virar uma segunda casa.”

Vida ascética. Para Silviano, não existe diferença entre os ofícios do escritor e do artesão. Sentar e trabalhar. E muito. Numa sociedade cada

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